A espacialidade das histórias em quadrinhos: uma interpretação da teoria de Milton Santos acerca do sistema de objetos e do sistema de ação.
Marcos Paulo Ferreira de Góis
marcosruler@gmail.com
Este breve ensaio refere-se a um exercício de interpretação livre dos pressupostos teóricos para a geografia enunciados por Milton Santos em seu livro basilar A Natureza do Espaço (1996). O presente refere-se a um capítulo em particular de seu livro, justo aquele no qual o autor tenta estabelecer uma definição do que, afinal, trataria a ciência geográfica, a partir da demarcação do objeto de interesse dos geógrafos: o espaço. Milton Santos propõe que a geografia “cabe estudar o conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ação que formam o espaço” (p.62), ocorre que esse estudo deve compreender a dimensão dialógica entre os dois sistemas, sua interação e influências mútuas. Obviamente, o autor faz alusão a relações sociais mais óbvias que possuem uma dimensão espacial mais evidente, porque percorrida por certo grau de materialidade.
O que se propõe neste ensaio é adaptar os pressupostos basilares da ciência geográfica enunciados por Milton Santos à forma de expressão gráfica popularmente chamada de quadrinhos. Antes, faz-se necessário discorrer sobre o que é um sistema de objetos e o que é um sistema de ação, em separado, para posteriormente reuní-los em torno de um método geográfico eficiente. Isto se dará com a injunção de exemplos oriundos do universo quadrinhográfico.
Primeiramente, um objeto seria aquilo “que o homem utiliza em sua vida cotidiana, ultrapassa o quadro doméstico e, aparecendo como utensílio, também constitui um símbolo, um signo” (p.66). O que representa um objeto é bem mais que a sua simples existência, enquanto materialidade. Este precisa que lhe seja emprestada uma função e que lhe seja empregada uma ação para que se constitua enquanto parte de um sistema propriamente dito. A cada época novos modelos são criados, o que influencia diretamente nas funções e nas ações empreendidas sobre os objetos, assim como, no aspecto significacional que são atribuídos aos objetos.
Em histórias em quadrinhos há uma grande variedade de objetos figurados em cenas seqüenciadas. Estes objetos não estão colocados lá de forma arbitrária, pelo contrário, eles se constituem enquanto formas de comunicação que representam os conceitos construídos pelos seres humanos. O que formalmente não poderia se alegar é que a afirmativa possa ser generalizada, pois tantos são os estilos quanto são as possibilidades de representar o real em histórias em quadrinhos. Apenas em um quadro geral afirmaría-se que há nos objetos desenhados em seqüências sobre o papel cru uma dimensão espacial fundadora ao prenunciar suas funções e insinuar comportamentos.
A ação, preconizava Milton Santos, está “subordinada a normas, escritas ou não, formais ou informais e a realização do propósito reclama sempre um gasto de energia” (p.78). Essas ações precedem de algum planejamento, salvo, entretanto, que freqüentemente não há uma clareza em nossas ações, reveladas pelos impulsos para agir. “A ação é o próprio do homem. Só homem tem ação, porque só ele tem objetivo, finalidade. A natureza não tem ação porque ela é cega, não tem futuro” (p.82). As ações estão pautadas na observância do contexto social, nos limites e possibilidades que são postas à disposição dos atores sociais, veículos da ação. Mas são as “ações que, em última análise, definem os objetos, dando-lhes um sentido” (p.86) e não o contrário, mesmo que alguns objetos já “nasçam” com funções determinadas, eles só poderão exercer suas funções se houver uma ação e um veículo da ação.
A interação constante entre objeto e ação constrói a dinâmica espacial da sociedade. De maneira similar, nas histórias em quadrinhos as ações são proporcionadas pelas escolhas estratégicas, mais ou menos planejadas, dos personagens (atores – veículos da ação) sobre algum substrato referencial. Esse substrato é fruto dos inter-relacionamentos entre objetos e ações dotados de alguma intencionalidade.
Não haveria melhor exemplo nas histórias em quadrinhos do que o Homem-Aranha. Seu personagem principal, um ser humano dotado de poderes fantásticos adquiridos através de uma picada de uma aranha geneticamente modificada, possui as qualidades de uma aranha em um corpo de adolescente comum. Suas capacidades são elevadas, podendo escalar paredes, saltar entre prédios e se deslocar através da cidade com a seda de suas teias. Aliás, há que se demarcar que seus feitos aparentemente extraordinários estão inseridos, na realidade, em contextos ordinários. Antes de tudo porque suas ações estão inscritas nas possibilidades de atuar sobre o substrato referencial. Se este substrato é a cidade, como no caso do Homem-Aranha, ela deve se constituir de objetos que sejam suficientemente simbólicos para os leitores, na medida em que eles possam decifrar em qual cenário a história se desenvolve. Mas esta mesma cidade é constituída de ações que trazem sentido a existência (presença) desses objetos. A cidade de Nova Iorque do Homem-Aranha é a mesma de Peter Parker, sua auto-imagem de cidadão comum. A cidade de Peter Parker é a cidade comum, do cotidiano dos homens comuns, das relações típicas de grandes cidades. As ações e os objetos são figurações capazes de gerar nos leitores certa capacidade de identificação (prédios altos, veículos particulares, pessoas de terno etc.). O que se admite que gere a possibilidade de as histórias serem “percorridas” com entusiasmo. Por outro lado, a mesma cidade possuiria contornos diferentes a partir da inserção de uma outra lógica, a do ser fantástico. Isto gera uma perguntar fundamental: qual seria a importância dos poderes de Homem-Aranha fora do contexto social de uma grande cidade como Nova Iorque? talvez não haveria importância nenhuma, afinal. Stan Lee, autor das histórias de Homem-Aranha, intencionalmente produziu um quadrinho em que o personagem encontra-se “preso” a realidade de seu cenário. Os poderes de Homem-Aranha somente são de alguma valia na luta contra seus inimigos porque estes se concentram em ações na cidade grande, ou ainda, na metrópole. Na mesma metrópole que concentra problemas de ordem mundial.
Ao voltar a Milton Santos revela-se, cabalmente, essa relação fundamental entre espaço e sociedade: “Há, em cada momento, uma relação entre o valor da ação e o valor do lugar onde ela se realiza; sem isso, todos os lugares teriam o mesmo valor de uso e o mesmo valor de troca, valores que não seriam afetados pelo movimento da história” (p.86). Não há dúvidas que essa acertiva se dirigisse a relações sociais do “mundo real”, mas creio ter demonstrado que a dimensão espacial da sociedade, construída através do diálogo entre sistema de objetos e de sistema de ação, possui um alcance tão elevado que poderia até mesmo se admitir que essa dimensão recobre não somente a materialidade da vida como também os processos de criação do imaginário social.
REFERÊNCIAS
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. São Paulo: Edusp, 2008.
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