terça-feira, 1 de abril de 2008

Cartola: A Nobreza e a Elegância do Samba

Por Marcelo Guimarães da Silva

Cartola é uma daquelas figuras sobre a qual paira uma aura sobrenatural. Sua música, pelo estilo apurado e refinamento, tanto em harmonia e melodia quanto em linguagem, tornou-se atemporal. O choque entre a origem e formação do compositor e a sofisticação do seu trabalho causa fascínio em quem se aventura numa pesquisa sobre o sambista mangueirense.

As harmonias de Cartola são bastante complexas e suas melodias carregam uma beleza de tal proporção que, não por acaso, sua obra é alvo da admiração de estudiosos da música em todo mundo. O detalhe interessante é que Cartola não recebeu nenhuma educação musical formal. Aprendeu simplesmente observando o pai ao violão.” Aprendi sozinho. Meu pai tocava e eu ficava olhando pros dedos dele. Quando ele saía para trabalhar, eu pegava o violão e ficava repetindo o que ele estava fazendo”, contou o compositor.

Sendo ele um autodidata, toda a sofisticação de seu trabalho parte de uma sensibilidade inata. Some-se ao talento do gênio a rigidez e a disciplina com que trabalhava suas composições e o resultado será canções que figuram entre as mais belas da nossa música popular.

Há na música de Cartola uma suavidade que faz com que ela flua com impressionante naturalidade, suas melodias carregam uma sutil melancolia traduzida em letras que narram, em sua maioria, desencontros amorosos. Em suas composições, há momentos em que se percebe reminiscências de outros estilos musicais como choro e valsa sem que, no entanto, elas deságüem explicitamente nesses estilos. A - já citada - naturalidade com que sua música soa aos ouvidos, às vezes sugere um trabalho baseado simplesmente na inspiração, o que é um engano. ”Eu não sei o que é essa tal de inspiração. Para mim, isso não existe. Eu componho devagar que é para trabalhar bastante cada composição”, afirmou o sambista certa vez.

Outra questão curiosa diz respeito às letras de suas canções, que são de um português corretíssimo apesar de Cartola ter estudado somente até o quarto ano primário. Para que suas letras alcançassem o refinamento de estilo que desejava, Cartola dedicava-se à leitura de poesia, o que demonstra, mais uma vez, o zelo que o artista nutria por sua produção. Porém, um aprimoramento da forma de nada adiantaria se não houvesse no letrista sensibilidade e percepção para captar impressões e a partir delas criar conteúdos relevantes.

A maioria das letras de Cartola carrega, mesmo quando retratam momentos de infortúnio, uma serenidade diante dos acontecimentos, causando a impressão de que seu personagem não é capaz de modificar sua situação, seja ela a traição ou a solidão, só restando a ele conformar-se diante dos fatos. Para o Cartola-compositor, o ser humano não pode alterar o curso natural da vida, estando, portanto, à mercê dela. Sua obra é também, reflexo do seu tempo, do pensamento dominante da sociedade de então. Isso se torna claro ao observarmos a rigidez moral presente em diversas composições suas. Trechos como “Mas fiques certa que jamais/terás o meu amor/porque não tens pudor” (Amor Proibido) ou “Sim, deve haver o perdão para mim/senão, não sei qual será o meu fim” (Sim) são exemplos perfeitos.

O morro cantado por Cartola, basicamente aquele da primeira metade do século XX, reflete, igualmente, uma época: um morro ainda tranqüilo e amistoso, sendo o seu ambiente sempre observado por uma perspectiva positiva em músicas como Alvorada “Alvorada/lá no morro que beleza/ninguém chora não há tristeza/ninguém sente dissabor” ou Sala de Recepção “Mangueira és a sala de recepção/onde se abraça o inimigo como se fosse irmão”.

Como conclusão, percebe-se nas composições do gênio mangueirense um elo fundamental: seja retratando o amor, a vida no morro ou exaltando a Estação Primeira de Mangueira, escola de samba que ajudou a fundar, Cartola sempre deixou como marca registrada em suas canções a nobreza e a elegância, que são reflexos de sua figura.

Autoria de Marcelo Guimarães da Silva
Em cortesia ao Minerva Mutante.

Um comentário:

Unknown disse...

Lindíssimo.
"Amor proibido" é, de fato, a música do conformismo melancólico.