quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Cegueira Acadêmica

Por Renato Suttana*

 

Qualquer um que tenha alguma experiência com pesquisa acadêmica deverá ter experimentado, pelo menos uma vez, a impressão de que produzir conhecimento – conforme a peculiar expressão utilizada pelas agências de fomento – não é exatamente produzir novidade e, muito menos, produzir alguma coisa que interessa aos ouvidos alheios. Não faz muito tempo tive oportunidade de apresentar, num congresso em Ouro Preto, uma comunicação cujo tema era a obra da escritora paulista Hilda Hilst para uma audiência de cinco estudantes de graduação que por acaso não conheciam nada de Hilda Hilst. Evidentemente a comunicação, que pressupunha, da parte dos ouvintes, um conhecimento prévio da obra da escritora, não pôde acontecer como tal. Percebendo que pouco adiantaria discorrer sobre determinado aspecto dessa obra diante de pessoas que sequer tinham ouvido falar dela, fui obrigado a mudar de estratégia. Abandonando o tema que me propusera a desenvolver, passei a fazer uma apresentação mais primária dos escritos da autora, discorrendo sobre os títulos e o conteúdo de seus livros em detrimento da crítica dos mesmos. De certo modo, se o objetivo dos congressos é, de fato, auxiliar na disseminação do conhecimento e criar oportunidades de compartilhá-lo, minha tarefa se cumpriu ali, pois algum serviço prestei às estudantes. Entretanto certo sentimento de frustração não pôde ser evitado, já que, para fazer o papel de propagandista da autora ou para falar de assuntos que poderiam ser facilmente encontrados em orelhas de livros ou na Internet, eu não precisaria ter ido a Ouro Preto.

 

A própria expressão que se usa hoje em dia para designar o tipo de trabalho que se pode realizar no campo da pesquisa em ambientes acadêmicos – produção de conhecimentos (ou, piormente, produção intelectual) – já denuncia o estado de coisas a que quero aludir. Uma vez que o saber se torna cada vez mais passível de quantificação e uma vez que o número tende a dominar todos os setores da vida profissional (quantidade de dias trabalhados, quantidade de escritos publicados, quantidade de eventos freqüentados), não há senão que esperar a frustração. Tendo a contabilidade invadido todos os recessos da vida mental, e esforçando-se cada indivíduo para modelar sua carreira e conduzir suas ações segundo os parâmetros da numerologia dos currículos, seria difícil esperar que do automatismo – e das esperanças que se depositam nele – surgisse algo menos que uma monstruosidade. Seqüestrados, subjugados, submetidos por todos os lados pela lógica da quantidade, saímos a campo para conquistar um espaço, e aquilo que conquistamos não vem a ser um retrato do que somos realmente, mas uma prova de que, de alguma maneira, descobrimos um modo de lidar com a situação e principalmente de fazê-la trabalhar a nosso favor. E, se no âmbito das compensações imediatas (sejam elas de caráter moral ou material) nos sentimos pagos e realizados, isso nada tem a ver com a idéia de que os nossos atos se tornaram projeções reais de um modo de ser que, fomentado pela academia, teria atingido uma consistência qualquer no fluxo do tempo e das coisas. Pelo contrário: é apenas prova de que ainda estamos longe da verdade e que há muito por fazer, só não havendo – desde que foi aberto o dique da numerologia – limites para a insatisfação.

 

Uma das conseqüências da invasão da academia pelos números é – conforme o episódio do congresso me ensinou – o que se poderia chamar de uma perda do senso de proporções e da capacidade de avaliação fidedigna das coisas. Numa época em que a produção de mercadorias tende a crescer vertiginosamente e em que não há nada a que não se possa aplicar um preço, a universidade e tudo o que se liga a ela não pode ficar inerte. Aos poucos, aqueles que participam dela imediatamente – professores, alunos, funcionários – assistem à sua própria transformação em peças de uma burocracia que os leva para todos os lados sem que possam, como indivíduos, impor qualquer direção ao seu destino. E é isso que devemos considerar como sendo o coroamento de séculos de esforços e de efetivaprodução de saber, isto é, uma grande máquina bem azeitada que funciona à revelia de todos e em cujo funcionamento depositamos nossa confiança, na expectativa de que por si só nos levará a bom porto.

 

Por certo, nunca se pensou tanto, se ensinou tanto e se escreveu (e publicou) tanto como na época atual, mas esse pensar, esse ensinar e esse escrever parecem ter gerado também um volume considerável de produções excrescentes. Tal como manchas de musgo na superfície de um muro denunciam a presença de umidade, seria interessante perguntar também se as excrescências indicam alguma coisa ou se são apenas um subproduto indesejável. Seria justo pensar que no estágio atual da produção do saber um acentuado processo de fragmentação e de conversão do conhecimento em mercadoria vendável se encontra em andamento, e num sentido muito mais profundo do que aquele que há em dizer que a universidade apenas espelha (e reproduz) em seu interior o processo mais amplo da vida no mundo. Se os professores (e demais participantes do teatro acadêmico) estão aprendendo a cada dia a se tornar competidores e se estão descobrindo que é preciso, sobretudo, de qualquer maneira, “derrubar a concorrência”, uma das causas está no modo como a vida universitária se configura atualmente. E, se não basta apenas dizer que somos levados de roldão, isso também não nos isenta da responsabilidade – mas é exatamente a capacidade de arbítrio do indivíduo que tem sido, pouco a pouco, solapada pelas estruturas do anonimato e do número.

 

Aquilo que as produções excrescentes significam não poderia ser descrito apenas como sendo o sentido mesmo de existir da academia, desde que as admitimos como excrescências e não como o objetivo principal da produção. Mas, se não podemos dizer que elas não têm um sentido, precisamos concordar que assim mesmo elas apontam para o processo mais amplo de que são apenas o sintoma, participando dele de uma maneira mais profunda do que tendemos a crer. Concorrem, por assim dizer, com (qualquer que seja ele) o objetivo final do processo ou caminham ao seu lado. E então não seria incorreto dizer que, mesmo excrescentes, elas têm afinal alguma utilidade. Muita gente hesitaria em concordar que determinadas pesquisas atuais, incluindo-se teses e trabalhos que são publicados cotidianamente, possam ter qualquer serventia. Quem nunca encontrou numa revista algum artigo sobre, digamos, o emprego da palavra pedra na poesia de Carlos Drummond de Andrade, ou do termo travessia e equivalentes na obra de João Guimarães Rosa, ou sobre o tema da intertextualidade e seus correlatos nos escritos de fulano? Alguém poderia se lançar de ânimo puro à pesquisa do sentido da palavra seda na poesia de João Cabral de Melo Neto, sem se dar conta de que o mesmo estudo que se escreve sobre tal palavra poderia ser escrito também sobre as palavras lâminasol e mar nessa poesia, condenando-se assim, desde o início, a não chegar a lugar nenhum. Evidentemente não estou a negar que, estudando esses temas, se possa obter, apesar de tudo, alguma relevância. Mas essa relevância dependerá muito mais do talento individual de quem se arrisque ao empreendimento do que das condições que por acaso o propiciem, sejam elas quais forem. A academia – que leva fulano ou sicrano a tomar esta ou aquela iniciativa e a se comportar desta ou daquela maneira diante de sua própria pretensão ao conhecimento – se encarrega ela mesma de abençoar ou de descartar o que não faz sentido ou foi produzido apenas para fins protocolares, e os periódicos estão aí para comprová-lo. A construção da carreira, porém, muito mais sólida do que as bases em que se fundamenta, não se comporta do mesmo modo, sendo preciso, em geral, um golpe de vista muito mais apurado para se perceber esse fato – e mesmo assim com o risco de que só muito tardiamente venhamos a percebê-lo.

 

É claro que, se as coisas ficassem nisso, não teríamos tanto do que nos queixar, pois, depois de produzido o perfunctório, o tempo pode muito bem se encarregar de fazer a triagem. As complicações começam quando do terra-a-terra das ilusões acadêmicas básicas – a idéia de que a construção do currículo pessoal patenteia um real mérito do indivíduo e não a sua simples ambição de ostentar um mérito que futuramente poderia converter-se em vantagens de carreira – se passa para o jogo mais agressivo da competição profissional, a ocorrer no ambiente imediato de trabalho. Neste ponto, a cegueira acadêmica atinge o seu extremo, impossibilitando-nos de enxergar o momento em que os vários planos – ambição profissional, mérito intelectual, relevância da atuação acadêmica – se confundiram. Chamo de cegueira o fato de que a academia, a viver de uma atividade mental incessante, se torne muitas vezes no ambiente menos propício ao exercício de qualquer atividade intelectual que mereça esse nome, ou que se configure como o ambiente onde a última coisa que se deve fazer é pensar. Schopenhauer escreveu sobre isso com memorável azedume. Ao assinalar que, no campo da filosofia, os pensadores verdadeiros “têm pelo menos uma opinião decisiva [...] sobre cada problema da vida e do mundo, e assim não precisam indenizar ninguém com frases vazias”, afirmou que os filósofos de cátedra, “que sempre são vistos comparando e ponderando opiniões alheias, em vez de se ocupar com as próprias coisas”, agem como se falassem “de países longínquos, a respeito dos quais se teria de comparar criticamente os relatos dos poucos viajantes que lá estiveram, mas não do mundo efetivo estendido e posto claramente diante deles”. Poderia ser argüido que o depoimento de Schopenhauer não tem validade neste ponto, pois é perpassado de um ressentimento pessoal que compromete a objetividade de sua avaliação. Mas como negar que, qualquer que seja a área, em sua ambição de produzir a inteligência, a academia se tenha tornado também num ambiente propício à gestação da vaidade, do sentimento de competição e, sobretudo, numa incansável máquina de alentar o mau-caratismo (este último por sua vez muito pouco disposto a ser corrigido pela simples listagem de títulos ou pela exposição na Internet de longos currículos que impressionam muito mais pelo fato de serem longos do que pelo que quer que tenham a dizer sobre os méritos efetivos de quem se acha neles retratado)?

 

Não há negar que as exceções são muitas. E não queremos fazer julgamentos de ordem moral, pelo menos antes de termos analisado os fatos. Se pudermos nos contentar com a idéia de que a cegueira acadêmica, conduzindo à perda do senso de proporção, ajuda a acentuar também o sentimento de impotência individual, devemos crer que um de seus efeitos é o surgimento de nichos, de verdadeiras rachaduras no tecido burocrático onde cada um se ajeita como pode. É no espaço da mais extrema racionalidade que os procedimentos de acomodação mais parecem pulular. Também não se trata de dizer que tudo seja acomodação. Entretanto quando, digamos, um professor se vale de seu título para impor certo tipo de autoridade a seus alunos (diferente, pois, da autoridade que deveria emanar naturalmente da relação que se estabelece entre educador e educando em sala de aula) ou para “aterrorizar” os seus pares ou os próprios agentes da rotina escolar a partir do suposto prestígio que lhe concede a detenção do saber, fechando as portas ao diálogo, ou quando se convence de que o título o torna imune a qualquer crítica ao seu trabalho, não podemos pensar de outra forma.

 

Recentemente me dei ao (enorme) trabalho de participar de um concurso para professor adjunto na área de literatura promovido por uma universidade pública brasileira. Dentre os dezenove pontos da ementa, tive de ocupar-me, durante quase dois meses, de estudos que incluíam, entre outros não menos exaustivos, os seguintes assuntos (cada um deles vasto o suficiente para em si mesmo justificar todo um procedimento de concurso): gêneros literários: linhas de continuidade e ruptura; mimesis e verossimilhança na narrativa literária moderna; formalismo russo: a noção de estranhamento; New Criticism: os princípios de interpretação do poema; estruturalismo: a imanência do texto literário; prosa e poesia no romance de José de Alencar; a questão da onisciência no romance de Eça de Queirós; a ambigüidade do narrador no romance de Machado de Assis; a poesia do cotidiano de Manuel Bandeira; a heteronímia poética de Fernando Pessoa; lirismo, ironia e reflexão na poesia de Carlos Drummond de Andrade; forma e lirismo em João Cabral de Melo Neto; universalidade e regionalismo no romance de Graciliano Ramos; a moderna narrativa psicológica de Clarice Lispector; epos e romance em Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa. Seria, pois, de perguntar se a uma banca avaliadora composta apenas de três membros – conforme observei durante as provas – era possível tamanho domínio de saber ou, pelo menos, um domínio satisfatório de todos esses setores dos estudos literários, considerando-se que as provas seriam aplicadas a candidatos que, supostamente, poderiam ter o mesmo grau (ou pouco menos) de formação acadêmica que os avaliadores. Não se trata de julgar a capacidade ou incapacidade dos avaliadores para esse empreendimento, mas não posso deixar de me perguntar se não estaria em curso ali também um evidente processo de acomodação às circunstâncias, no qual, sendo impossível sequer reconhecer o tipo (e o grau) de conhecimento que se queria avaliar, o carro teria de continuar em movimento assim mesmo, com todos os obstáculos do percurso, porque no final sempre se chega a algum lugar? Mas não é exatamente aí que o edifício da racionalidade desmorona, convertendo-se em solo fértil para o afloramento das injustiças, do nivelamento por baixo e das adequações nem sempre claras às circunstâncias?

 

É de supor que, em situações como essas (do concurso e outras), dificilmente se poderia avaliar com precisão um mérito efetivo, qualquer que fosse ele. E, no entanto, não há nada mais justo do que a própria idéia do concurso público, regida ela mesma por rigorosas legislações e metodologias, as quais – num lance de prestidigitação característico da legalidade contemporânea – estão sempre abertas ao conhecimento de todos. Acontece que, quando a legalidade se converte em retórica, tanto pode se tornar vítima (ou refém) de si mesma quanto naufragar num verbalismo sem objeto, com as acomodações a bater à porta solicitando entrada. Num complexo de situações em que as questões éticas não podem ser debatidas, porque simplesmente não existem bases para que o sejam, a primeira solução é recorrer aos regulamentos e às normas, mas os regulamentos e as normas já fracassaram há muito tempo. Onde então a possibilidade do diálogo fundado em premissas que sejam realmente do conhecimento das partes? Não há dúvida de que a academia tem aspirado a isso, mas, uma vez entravada, uma vez enleada em mil obstáculos que brotam da própria tentativa de solucioná-los, só pode assistir à materialização de seus piores pesadelos – ela que, como ninguém mais, deveria estar aparelhada para prevê-los ou para nos ensinar a contorná-los.

 

Nos dias de hoje, os esforços de acomodação parecem ter invadido todos os recessos da vida acadêmica. Passando pelo estudante que plagia um texto da Internet e o encaminha ao professor como se se tratasse de produção original, pelas más condições de trabalho oferecidas aos professores (geralmente chamados “substitutos” ou “colaboradores”) que trabalham em instituições públicas sem pertencerem ao quadro efetivo de docentes, pelas regras oficiais de formatação de trabalhos em publicações que mudam constantemente porque isso estimula a venda de manuais, pelo pós-graduando que simplesmente “encomenda” uma tese a um profissional “especializado” em tais serviços, o que se vê é uma busca generalizada de sobrevivência a qualquer custo, e não tanto porque se optou pela lei do menor esforço, mas porque o estado de coisas é propício a tais soluções. Mesmo no âmbito da legislação é possível detectar o momento em que a solução se reverte em problema, como no caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais, redigidos num belo espírito de orientação humanista e emancipatória, mas sem que se levem em conta as reais condições de produção sobre as quais o ensino assenta na sociedade atual, a proibir qualquer tentativa de emancipação do indivíduo. Pode-se legislar no vazio ou fazer com que a grande máquina que é o ensino, profundamente comprometida com a crua realidade do mundo moderno, funcione a contra-corrente, levando à emancipação sem se emancipar ela mesma frente ao que a determina? Ignorar esses fatos é ignorar essa realidade. E então se corre o risco – conforme vem acontecendo nos últimos anos com o sistema de educação brasileira – de mergulhar mais fundo na enchente, sem qualquer perspectiva de emergir dela ou de estancá-la a curto prazo.

 

A sensação de que produzir conhecimento não se dirige hoje a ninguém pode ser apenas um efeito, e qualquer um sabe que não basta combater o sintoma para se atingir a raiz da doença. Ora, o termo produzir, no caso, deveria indicar, pelo menos, alguma forma de integração a qualquer coisa de mais amplo, configurada no sistema de ensino atual, implicando também a consciência que temos dessa integração. Mas às vezes nem isso acontece, como o demonstrou minha experiência do congresso em Ouro Preto (e outras experiências do mesmo teor) – uma gota de água, reconheço, num vasto oceano. É possível falar em reforma universitária, conforme a pauta contemporânea, sem se colocar em questão a idéia mesma de sistema de ensino ou sistema de produção de saber que fundamenta, de um modo ou de outro, e portanto dirige tal reforma? A pergunta, com o que tem de urgente e imperiosa, deveria, senão trazer pesadelos, ao menos tirar o sono daqueles que se preocupam com o assunto.

 

 

Publicado originalmente em Comunicações - Revista do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba, v. 12, n. 1, jun. 2005. p.114-119.

 

Reproduzido do site do autor: http://www.arquivors.com/cegueiraacademica.htm

 

Boa leitura. Até!

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