quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Uma outra "pincelada" sobre a crise

FERNANDO CARDIM

"Será preciso repensar um projeto para o país"

O Brasil tem alguns trunfos significativos para enfrentar a crise. Ao contrário de muitos países da periferia do capitalismo, a escala do mercado interno e a existência de uma base industrial ampla e sofisticada dá boa margem de manobra à economia brasileira. Mas é preciso realmente ativar essas potencialidades, defende o economista Fernando Cardim, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Ainda é cedo para antecipar o alcance transformador dos abalos sísmicos que sacudiram o sistema capitalista nas últimas semanas. Solavancos desse porte, todavia, quase sempre empurraram o debate intelectual e a luta política na periferia do capitalismo, renovando a agenda do desenvolvimento e a da democracia. 

O Brasil não figurou entre as exceções em nenhum dos grandes marcadores dessa linha do tempo que vai de 1929 à Segunda Guerra, passando pelos choques do petróleo e o do juros, nos anos 70, ao colapso da dívida externa nos anos 80, apenas para citar algumas pontos de baldeação estratégica. 

Ainda que menos vulnerável desta vez, ancorado em reservas de US$ 205 bi; e tendo conquistado a auto-suficiência energética; uma ampliação do mercado interno; renovado o leque comercial e promovido uma retomada do investimento público com o PAC, ainda assim, o país não escapará à necessidade de um aggiornamentoeconômico. 

Essa é a opinião do economista Fernando Cardim, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

A discussão de um novo projeto econômico, no seu entender, tende a se impor à medida em que fica cada dia mais claro que o assoalho que sustentava a dinâmica anterior se desfez. A liquidez abundante e o comércio internacional aquecido dificilmente sobreviverão ao esfarelamento do sistema financeiro mundial.

A etapa seguinte à emergência financeira - centrada, por enquanto, no esforço para destravar os mecanismos de crédito da economia -, requisitará linhas de passagem para um outro padrão de crescimento. Carta Maior acredita que esse debate vai redefinir a agenda política do país, e fará de 2010 uma disputa histórica, marcada por forte sentido de mudança na matriz do nosso desenvolvimento. 

A seguir, excertos da conversa de Fernando Cardim com Carta Maior:

Flanco externo: o canal de transmissão da crise
"De imediato temos que nos mover entre três fogos, sendo um deles favorável: a depreciação cambial, que devolve competitividade às exportações. As duas outras linhas de tiro, porém, a recessão mundial e a reversão do fluxo de capitais - que não apenas afasta novos investidores, como gera saída líquida de recursos - sugerem, à primeira vista, um retorno ao velho padrão de vulnerabilidade externa. De forma recorrente, ele tem abortado o desenvolvimento na periferia do capitalismo em períodos de reversão do ciclo de liquidez e juros baixos no plano mundial. Porém, desta vez, há complicadores adicionais".

Fator China, o limite que não existia
"Embora disponha de reservas cambiais significativas – diferente do que aconteceu no governo Fernando Henrique, por exemplo,quando o país quebrou três vezes - o reposicionamento externo da economia nesta crise terá que ser pensado de forma mais abrangente. O fator China delimitará significativamente o passo seguinte da industrialização brasileira. Já era assim antes da explosão da bolha, mas o problema agora é que os chineses também vão se tornar mais agressivos comercialmente. Tentarão, inclusive, ganhar mais espaço no mercado interno brasileiro". 

As diferenças entre 1929 e 2008
"Durante o ciclo de industrialização que sucedeu à crise mundial de 1929, a China sequer era um país e tinha pouco impacto econômico no curso brasileiro. O Brasil pode, então, deslanchar um projeto de industrialização substitutiva de importações que mudou o porte e a complexidade de sua economia. Hoje temos uma base industrial ampla e diversificada. Nesse sentido estamos melhores. Acontece que a China também mudou. E proporcionalmente mais que nós. Tornou-se um competidor agressivo no mercado mundial, com um leque amplo de produtos que incluem desde industrializados de baixo preço, até linhas mais sofisticadas como bens de capital e produtos eletrônicos modernos. Sua mão-de-obra é das mais baratas do mundo. A escala demográfica do país projeta o horizonte dessa exploração para anos à fio".

"Com apenas 20% da população no setor moderno da economia, a China já reúne 300 milhões de pessoas - mais que um Brasil inteiro - produzindo com os olhos voltados fixamente no mercado mundial. E tem de sobra um exército de reserva de 750 milhões de pessoas, que costuram manufaturados até com o dente, se preciso, para ganhar algum dinheiro". 

Chineses marcam o campo todo do comércio mundial
"No passado, cada vez que um país pobre se desenvolvia, galgando posições no processo industrial, deixava para trás um espaço vazio que podia ser ocupado por outros. Sempre foi assim e o próprio Brasil se aproveitou dessas “aberturas” para investir em manufatura de baixo preço, como tecidos, sapatos e alimentos industrializados. Com a China a regra do jogo mudou. Ela vai para frente mas não abre um buraco atrás. A China marca o campo todo do comércio mundial: vende de sapatos a bens de capital, moda e microeletrônica. Os chineses agarram o filé mas também não soltam o osso".

"Esse padrão é totalmente novo. E deve se aprofundar com a crise colocando algumas provas cruciais à industrialização brasileira parasuperálo. Com a retração do mercado norte-americano, os chineses tentarão, inclusive, avançar sobre o terreno já conquistado pelo Brasil no seu próprio mercado" (NR: para desovar a produção que não conseguem mais vender aos EUA e Europa, fabricantes chineses de calçados estão oferecendo descontos de preços de 40% a 50% a importadores brasileirso -- Valor Econômico de 17-10).

Quem atrelou o destino ao mercado norte-americano derrete 
O Brasil tem a sorte de haver resistido às propostas de livre comércio tão festejadas nos anos 90. Países como o México, por exemplo, que transformaram sua indústria em maquiladora para vender aos EUA, serão esfareladas pelo acirramento da concorrência gerada pela retração mundial. As maquiladoras mexicanas não têm como enfrentar a concorrência chinesa, mesmo estando na fronteira com os EUA. O México sofrerá muito, também, com a queda nos preços do petróleo. Está emparedado.

Repensar um projeto para o Brasil 
"O que sobra para o Brasil? Temos trunfos significativos. Ao contrário de muitos países da periferia do capitalismo, a escala do mercado interno e a existência de uma base industrial ampla e sofisticada dá boa margem de manobra à economia brasileira. Mas é preciso realmente ativar essas potencialidades. Como? Esse é o debate que tomará força a partir de agora". 

Um recorte keynesiano/gaullista para a economia
"Eu diria que vamos precisar de um projeto de recorte keynesiano/gaullista. Trata-se de assegurar o mercado interno para o investimento interno brasileiro. Todas as brechas devem ser acionadas. Os limites de proteção autorizados pela OMC devem ser ativados; e outros devem ser pensados. Ademais, é preciso dar ao PAC a verdadeira dimensão de um projeto reestruturante, com estratégia corajosa de expansão e consolidação do mercado interno".

Indução pública do investimento sem depender de poupança externa
"A liquidez externa vai secar. Mas a verdade é que o Brasil não precisa e não deve depender de poupança externa. Temos potencial mobilizável para manter uma taxa de investimento alta na economia. Obviamente, com juros reais de 8% ao ano, fica difícil, como se viu até agora. Mas o país pode e deve reposicionar seus instrumentos de política econômica: a) além de baixar os juros, é preciso dar ao BNDES o capital que for necessário para que o banco possa arrastar o restante dos investidores privados em direção a projetos produtivos. Poucos países do mundo têm um trunfo como o do BNDES, não se pode desperdiçá-lo; b) é necessário promover uma reforma no mercado de capitais para induzir recursos ao setor produtivo; c) é indispensável atrelar a política fiscal firmemente a um plano de investimentos em infra-estrutura".

O risco do déficit em transações correntes 
Ao mesmo tempo, temos que fechar o flanco externo ou logo teremos problemas nas contas correntes. A primeira providência é mudar a política do BC. Nos últimos anos, uma política de juros absurda inundou o país de capitais externos sobrevalorizando o Real. As importações baratearam enquanto perdíamos, simultaneamente, competitividade externa.O descompasso comercial era compensado pelo ingresso de capitais voláteis atrás dos juros oferecidos pelo BC. Essa mecânica se esgotou. Já temos sinais de saída de dólares para cobrir posições e prejuízos no exterior. Do jeito que vai em um ano estaremos pagando importações com dinheiro de reserva e não com a venda de produtos. É imperioso deter essa dinâmica. O baque do Real ajuda, mas é necessário dar estabilidade às cotações e sintonizar a taxa de juros à nova realidade macroeconômica".

Integração sul-americana não virou abraço dos afogados
"Alguns países da América do Sul vão sentir duramente a crise, caso do Equador e da Venezuela, atingidos em cheio pela queda nos preços do petróleo. O Chile será abalroado pelo mergulho das cotações do cobre. A Argentina, que já vinha com problemas, mesmo ancorada nos preços altos das commodities agrícolas, viverá ajustes inevitáveis. Seria precipitado, porém, dizer que a crise reduz a agenda da integração sul-americana a um abraço dos afogados. Não creio. Dependerá muito do Brasil. A exemplo do que fez Alemanha no caso da União Européia, cabe a nossa liderança garantir um guarda-chuva político e econômico aos parceiros regionais nesse momento. Afinal, interessa ao Brasil que o mercado sul-americano seja preservado".

"Dificuldades e assimetrias sempre existiram, mas agora talvez fique até mais fácil a condução política da agenda regional. Chávez, que disputava a liderança do processo com Lula, perderá densidade nas negociações proporcionalmente à redução das receitas com petróleo, sua principal arma de convencimento. Em relação à Argentina, se é verdade que o Brasil deve conter “radicais” que negam legitimidade a sua reindustriualização, o tom, do lado de lá, deve ficar mais amistoso. Sem o apoio do Brasil a Argentina certamente pagaria mais caro o ajuste cobrado pela crise. Espanta-me apenas o Equador. Numa hora como essa, seu governo age de maneira atabalhoada, como se não medisse as conseqüências do isolamento em relação ao Brasil. Parece mesmo desdenhar o contrapeso que a integração regional pode exercer para mitigar a crise". 


Fonte: CARTA MAIOR

Até!

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